terça-feira, 15 de novembro de 2011

Comer é uma arte

Comer na Espanha é delicioso. Paella, arroz com frutos do mar, jamón serrano, azeitonas verdes... Pratos e ingredientes que por si só já enchem os olhos de qualquer pessoa e que me fizeram chegar ao país sonhando com o fim das baguetes e dos sanduíches. Porém, como na França, eu sabia que o que me impedia de comer bem não era o cardápio, mas o preço. Foi então que eu descobri que na Espanha comer é duplamente delicioso porque a comida boa vem acompanha de preço baixo. Tudo isso graças aos famosos Tapas.

(Tapas a perder de vista em uma loja de Barcelona. Foto tirada desse link)

Logo no primeiro dia, depois do passeio pelo centro histórico nos embrenhamos nas ruas de Sevilha a procura de um bom restaurante. E encontramos um ótimo! Na rua Mateos Gago está o La Taberna, um local simples e aconchegante que tem os tapas como especialidade.

Os tapas são, na verdade, aperitivos que podem ser feitos com diversos e diferentes de ingredientes para acompanhar a cerveja. Eles são pequenos, baratos e deliciosos. Dizem que o "tapa" surgiu no século XIII, durante o governo de Afonso X, o sábio. Quando ele ficou doente se viu obrigado a beber alguns copos de vinho durante o tratamento. Para que o álcool não lhe subisse à cabeça, pediu aos seus cozinheiros que preparassem pequenos aperitivos, que eram sempre colocados em cima da taça de vinho, como uma tampa. Em espanhol, uma "tapa". Em pouco tempo, os bares da cidade de Castilla, onde vivia o rei, passaram a servir vinho acompanhado de uma pequena porção de comida.

(Bendita combinação. Foto tirada desse link)

Outra história afirma que o "tapa" surgiu durante uma viagem do rei Alfonso XIII a Cádiz. No caminho, resolveu parar na província de São Fernando para tomar um pouco de vinho. Como o local ventava muito, o garçom colocou uma fatia de presunto em cima da taça, como uma tampa, para impedir que entrasse pó na bebida. O rei comeu a fatia, bebeu o vinho e gostou tanto da ideia que pediu outra taça, mas com "la misma tapa".

Hoje, a Real Académia define un tapa como "qualquer porção de alimento sólido capaz de acompanhar uma bebida". No fundo é como a nossa comida de buteco servida em porções pequenas e individuais. Mas no dicionário não está escrito que é tão difícil escolher. Entre aquela infinidade de opções começamos com as patatas bravas: batata frita em cubos com ovos fritos misturados em um molho de tomate alaranjado. Simples assim, e delicioso. Depois, cada um pediu um tapa diferente e foi aquela troca de garfos e pedaços típico da farofada (ou falta de educação mesmo) que só os brasileiros sabem fazer.

(Dos tapas mais simples...)

(Aos mais sofisticados. Na primeira foto tortilha de batata com salsa, e jamón serrano com lombo enrolado, empanado e frito. Na segunda, carpaccio de boi com pistache e queijo, e lombo de bacalhau. Fotos tiradas desse e desse link)

Bom que o bar estava cheio e ninguém reparou na nossa bagunça. Chegamos no La Taberna às 14h, horário em que o espanhóis começam a sair do trabalho para almoçar. Um horário bem tarde, diga-se de passagem. Tão tarde que algumas pessoas tomam dois cafés da manhã à espera do almoço, que pode durar até as 15h, 16h, 17h... E a siesta, o famoso cochilo pós-refeição, é sagrada em Sevilha. Tudo fecha nesse horário, exceto os próprios bares.

O restaurante que escolhemos era um dos que estava aberto. E cheio. Havia um balcão do lado de dentro com algumas pessoas tomando a tradicional cerveja Cruz Campo e petiscando azeitonas verdes em pé. Realmente pensei que estivessem lá por falta de cadeiras. Mas então vi que as mesas do lado de dentro e também do lado de fora não tinham cadeiras. Se o mistério nº 1 dos hábitos alimentares daquele país é porque comer tão tarde, o mistério nº 2 é porque comer em pé. Me lembro que tive a mesma dúvida em Madrid... Então percebi que não se sentar faz parte da tradição de tapear (comer tapas). Uma tradição até confortável. Deve ter algo a ver com a alegria de estar rodeado de amigos pois a sensação que me deu era que estávamos lá mais para conversar que para comer!

(O prazer da boa conversa no balcão de um bar de tapas. Foto tirada desse link)

A noite cai

Se o almoço na Espanha começa as 14h, não tem como o jantar sair cedo. Saímos do apartamento por volta das 21h para então procurar um lugar para comer. Fomos novamente ao centro e dessa vez paramos em um restaurante (desses em que a gente escolhe uma mesa e come sentado, você se lembra?). O preço baixo, a quantidade e a variedade nos fizeram pedir tapas novamente.

(As patatas bravas eram quase isso, só que com ovo e mais molho. Foto tirada desse link)

Enquanto comia perguntei aonde íamos depois. "A outro bar de tapas", foi a resposta. Eis a famosa arte de tapear: em Sevilha, as pessoas saem a noite para um bar para tomar uma cerveja e comer una tapa. Depois de uma ou duas horas vão a outro bar, tomar uma cerveja e comer outra tapa. Depois vão a um terceiro bar... tomar mais cerveja e comer mais tapas... E só param de madrugada, quando decidem sair para dançar ou continuar tomando umas e outras em um lugar qualquer.

A próxima parada era então a Plaza del Salvador, um grande espaço aberto exclusivo para pedestres que ganhou esse nome por causa da igreja de São Salvador logo em frente. A linda igreja, pintada de branco e rosa, foi contruída em estilo barroco ainda no ano de 1674 e hoje é a segunda maior da cidade, perdendo apenas para a Catedral. Mas a noite, ela é só um ponto de encontro. O que chama atenção naquele lugar é a aglomeração de pessoas. Jovens, adultos, idosos, de todas as nacionalidades.

(Ponto de encontro dos moradores e dos estudantes Erasmus em Sevilla. Foto tirada desse link)

Enquanto o pessoal tomava uma cerveja (em pé) em um dos bares que ficavam ali em frente, eu me sentei com a Tissi e com algumas amigas espanholas nas escadarias da igreja. Elas tentavam nos ensinar a comer sementes de girassol. As sementes são vendidas em pacotinhos, como chips, e são verdadeiros petiscos. Me lembro que vi um monte desses pacotinhos em Grenoble, enquanto assistia ao jogo entre Barcelona e Real Madrid. As sementes de girassol estão para os espanhóis mais ou menos como o amendoim está para os brasileiros. Com a diferença de que o nosso não tem casca. Há toda uma técnica para comer: você coloca a ponta na boca, morde, abre, pega o que tem dentro e joga a casca fora. Enquanto eu comia um as meninas devoravam uma dúzia.

Quando estávamos quase indo embora escutamos de longe umas mulheres cantando. Era um grupo de senhoras que tomavam Cruz Campo no bar logo em frente. Mais pessoas foram chegando e as palmas foram ficando mais fortes. Elas cantavam flamenco e dançavam com a ajuda de todos ao redor. Um espetáculo totalmente espontâneo. E muito bonito! O engraçado era que dali iríamos para um bar que tocava flamenco, e mesmo assim me disseram: "O que você viu aqui você não vai ver em lugar nenhum. Esse é o verdadeiro flamenco". Ainda não tinha visto nada parecido, mas por alguma razão eu estava de acordo.

(Las bailarinas)

Seguimos então para o La Carbonería, um bar na calle Levies com apresentações culturais que toda a noite apresenta o flamenco de Sevilha. O espaço é, na verdade, um grande galpão separado em dois ambientes. Na primeira parte, um pequeno palco onde ficam os cantores e as dançarinas. Lá atrás estão mesas e cadeiras e o bar aonde as bebidas são servidas. Chegamos tarde e o show já tinha começado, mas conseguimos ver um pouco da apresentação. A música flamenca é sempre forte e bonita, então quanto a isso não tinha o que reclamar. A dança era linda figurinos, cabelo, olhares... mas me pareceu ensaiada demais. Confirmei então o que me disseram horas atrás e lembrei novamente das senhoras da praça.

(Leques, guitarras e palmas na Carbonería. Os símbolos de uma dança. Foto tirada desse link)

Passamos o resto da noite por ali, bebendo e conversando. O legal é que a galera vai ficando bêbada e fazendo tudo parecer ainda mais divertido. Rimos de um cara que caiu da cadeira na mesa ao lado, ensaíamos um samba batucado na mesa de madeira, e quando o bar já estava fechando, as meninas ainda subiram no palco e começaram a dançar flamenco e bater palmas. Para encontrar o espírito de um lugar é só estar em boa companhia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário